“AI First” é um dos lemas da administração de Donald Trump. Embora o presidente americano se apresente como o líder da restauração do setor industrial americano, suas primeiras ações após retornar à Casa Branca não se concentraram em tarifas ou políticas industriais, mas sim no desenvolvimento do setor de inteligência artificial (IA).
Em apenas três dias de governo, Trump assinou uma ordem executiva — equivalente a um decreto presidencial no Brasil — que estabelece “o compromisso dos Estados Unidos em sustentar e aprimorar a dominância da América em Inteligência Artificial, visando promover o florescimento humano, a competitividade econômica e a segurança nacional”.
O desejo de Trump de consolidar a liderança dos EUA no setor de IA vai além de meras promessas. Ele nomeou David Sacks, um dos maiores investidores em tecnologia do país, como seu “czar de inteligência artificial e criptomoedas”.
Ademais, os investimentos no setor já estão em andamento. Antes mesmo de Trump tomar posse, o fundador da DAMAC, gigante imobiliária dos Emirados Árabes, encontrou-se com ele em Mar-a-Lago para anunciar um investimento de US$ 20 bilhões em data centers nos EUA. Logo após assumir o cargo, foi a vez da Stargate Initiative, um consórcio privado com nomes como OpenAI, SoftBank e Oracle, prometer injetar até US$ 500 bilhões em infraestrutura de IA.
Essa enxurrada de grandes investimentos é fruto da necessidade de construção de uma vasta rede de infraestrutura para o desenvolvimento do setor. Ao contrário do boom da internet dos anos 1990, o boom de IA é muito mais intensivo em capital financeiro.
Em primeiro lugar, a IA possui um gasto de poder computacional muito maior para o treinamento e aplicação de seus modelos. Ademais, a IA utiliza e gera muito mais dados do que programas de software tradicionais. Por fim, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento também são muito maiores, devido à complexidade dos modelos de IA.
Sendo assim, o crescimento do setor de IA requer um grande investimento em data centers, que consomem níveis extraordinários de energia, e em equipamentos especializados para operar a IA. Não é coincidência que o valor de mercado da NVIDIA, a principal fornecedora de hardware para IA, tenha saltado de US$ 145 bilhões em 2020 para aproximadamente US$ 3 trilhões atualmente. Também não é surpresa que o governo americano esteja empenhado em garantir a “dominância energética” do país.
Segundo a consultoria McKinsey, a demanda por energia nos Estados Unidos deve atingir 606 TWh, mais de quatro vezes o nível atual de 147 TWh, para atender às necessidades do setor de IA. Portanto, sem um aumento significativo na produção de energia, os Estados Unidos enfrentarão desafios para desenvolver plenamente o setor de IA.
O desejo americano de manter a liderança mundial em IA não se restringe apenas a fomentar o crescimento econômico através do desenvolvimento da IA, que promete um significativo aumento na produtividade. A supremacia global no setor de tecnologia é vista pelos Estados Unidos como componente crucial para vencer a nova Guerra Fria contra a China. No outro lado do Pacífico, a China compartilha da mesma visão estratégica.
A China está apostando hoje em algo inédito para uma economia em desenvolvimento: competir com as grandes nações desenvolvidas em inovação tecnológica. A política industrial chinesa tem avançado na agregação de valor ao setor industrial, passando da produção de produtos de baixo e médio valor agregado, como vestuário, porcelanas e aparelhos eletrônicos de massa (celulares e TVs), para produtos de alto valor agregado, como carros elétricos, equipamentos de geração de energia e uma política de inovação tecnológica.
Não deveria surpreender que a nova IA chinesa DeepSeek possa competir com gigantes americanas como OpenAI e xAI. Quase metade dos pesquisadores de ponta no campo da IA são chineses, o país lidera em número de patentes de IA e supera os Estados Unidos na produção de estudos acadêmicos sobre o tema.
Além disso, o Estado chinês tem aumentado consideravelmente seus investimentos em IA. Segundo um estudo do Centro sobre a Economia e Instituições da China da Universidade de Stanford, o governo chinês investiu US$ 912 bilhões em políticas industriais na última década, com 23% desse montante direcionado especificamente para IA. Ainda, o fundo soberano do país planeja investir massivamente em infraestrutura de IA nos próximos anos.
Observador da festa
Enquanto os Estados Unidos e China brigam pela liderança do mercado de IA, o Brasil fica apenas como um observador da festa. É fato que hoje o Brasil não tem a capacidade financeira e técnica para o desenvolvimento de IA de última geração. Contudo, o Brasil deveria ser um país chave para atrair investimentos para a infraestrutura de IA.
O Brasil tem energia abundante, oriunda de fontes renováveis e de baixo custo, ou seja, temos a combinação ideal para nos tornarmos um hub mundial de data centers. Além disso, o Brasil possui vastos recursos minerais essenciais para a produção de equipamentos de IA, como uma das maiores reservas de quartzo (fonte primária de silício) do mundo, localizada em Goiás.
Também contamos com grandes reservas ainda pouco exploradas de cobre, estanho, tungstênio e diversos minerais de terras raras. Essas reservas minerais deveriam ser, portanto, aproveitados para impulsionar as indústrias de hardware no país, que serão cada vez mais demandadas no mundo da IA.
Infelizmente, o Brasil ainda não possui uma política clara para participar do crescimento do mercado de IA. Para agravar a situação, o Presidente da República, com desdém, declara que “está cansado de ouvir teoria, de ouvir falar nesse bicho de inteligência artificial”, questionando: “Num país com tanta gente inteligente, para que precisaríamos de inteligência artificial? Por que não valorizamos a inteligência humana que já temos?” Essa ignorância presidencial é alarmante.
E deve ser ainda mais preocupante para os investidores que poderiam posicionar o Brasil como peça-chave no mercado de IA, especialmente quando se veem obrigados a enfrentar a deterioração dos fundamentos macroeconômicos, um ambiente regulatório incerto e a insegurança jurídica do país.
No país onde perder oportunidades é praticamente uma arte, parece que estamos prestes a perder o bonde da IA, que promete revolucionar a economia e a sociedade global nas próximas décadas.
Graças à imprudência da ignorância, à ausência de governança e ao déficit de pensamento estratégico, estamos deixando escapar a chance de nos tornarmos um hub de desenvolvimento e operação de infraestrutura de IA, relegando-nos ao papel de meros consumidores dessa tecnologia, dominada pelos Estados Unidos e pela China.
Infelizmente, companheiros, o espírito de vira-latismo continua a reinar soberano na terra do rei cefalópode.
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Fonte: https://scc10.com.br/colunistas/joao-victor-da-silva/a-batalha-global-pela-supremacia-em-ia/